Gustavo Pamplona
Mestre em Direito
Especialista em Políticas
Públicas e Gestão Governamental
Uma questão reincidente na gestão hospitalar são os inúmeros pedidos de acesso a prontuários médicos por tercerios. O objetivo deste artigo é abordar a problemática para assegurar uma decisão administrativa legítima e que respeite a intimidade do paciente.
Primeiramente deve-se conceituar o que é o prontuário médico. O grupo de trabalhosobrearquivosmédicos do CONARQ (ConselhoNacional de Arquivos) assim define prontuário médico:
“O prontuário do paciente é o documentoúnico constituído de umconjunto de informações registradas, geradas a partir de fatos, acontecimentos e situaçõessobre a saúde do paciente e a assistência prestada a ele, de caráterlegal, sigiloso e científico, que possibilita a comunicaçãoentremembros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência prestada ao indivíduo.”
Ainda segundo o CONARQ:
“O prontuáriomédico, emqualquermeio de armazenamento, é propriedadefísica da instituiçãoonde o paciente é assistido, seja uma unidade de saúdeouumconsultório, a quem cabe o dever de guarda do documento. Ao paciente pertencem os dadosali contidos, quesó podem ser divulgados com a sua autorização, oudeverlegal”.
Portanto, o prontuário médico é documento do paciente sob os cuidados do nosocômio, assim como as fichas médicas que o compõe.
Importante lembrar que os prontuários médicos englobam, não apenas o registro da anamnese do paciente, fichas de atendimento do paciente, entretanto todo acervo documental padronizado, ordenado e conciso, referente ao registro dos cuidados médicos prestados ao paciente. Neste sentido, constituem um verdadeiro dossiê que tanto serve para análise da evolução da doença como para fins estatísticos que alimentam a memória do serviço e como defesa do profissional caso ele venha a ser responsabilizado por algum resultado atípico ou indesejado.
O prontuário médico se presta fundamentalmente a algumas funções tais como demonstrar a qualidade do atendimento despendido ao paciente, esclarecer informações médicas e o processo de decisão clínica, a formulação de estatísticas clínicas e administrativas, além de possibilitar a edição de relatórios gerenciais com o desenvolvimento de uma política de planejamento estratégico que permitem o gerenciamento de aspectos ético-legais.
A preservação dos dados contidos no prontuário médico justifica-se ante a necessidade de respeito ao direito constitucional à privacidade, à intimidade da pessoa, assegurado no inciso X do art. 5O da Carta Federal, sob cuja proteção encontra-se contido no prontuário médico do paciente, bem como em razão do dever de sigilo profissional do médico.
O fornecimento de prontuário médico sem o consentimento do paciente só poderá ocorrer nas hipóteses de “justa causa” (circunstâncias que afastam a ilicitude do ato) e “dever legal”.
Revelar a intimidade do paciente, na espécie, sua saúde, sem a justa causa ou dever legal, pode vir a causar dano ao paciente, e, além de antiético é crime, capitulado no artigo 154 do Código Penal Brasileiro.
A justa causa abrange toda a situação que possa ser utilizada como justificativa para a prática de um ato excepcional, fundamentado em razões legítimas e de interesse coletivo, ou seja, uma razão superior relevante, a um estado de necessidade.
É preciso, pois, passar à análise pormenorizada do real significado das expressões “justa causa”, “dever legal” e “autorização expressa do paciente”, contidas no art. 102 do Código de Ética Médica.
O ponto principal é a preservação da privacidade, pois só o consentimento do paciente, em princípio, autoriza a revelação do conteúdo. Cumpre indagar, assim, se a requisição da autoridade se constitui em justa causa ou dever legal, para efeitos de excluir a vedação do Código de Ética Médica.
A esse propósito convém, desde logo, esclarecer a natureza do Código de Ética Médica. Embora ele seja uma resolução do Conselho Federal de Medicina, não se trata de mero ato administrativo que vincularia, unicamente do ponto de vista administrativo, os médicos para a possível aplicação de sanções. O Código de Ética Médica tem natureza de lei, porque tem previsão expressa na Lei nº 3.268/57 (art. 30).
Nesse sentido, aliás, têm sido proferidas as decisões dos tribunais superiores. O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do habeas corpus nº 39.308-SP, já acentuou a condição de “lei” do Código de Ética Médica. Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do aresto proferido no Resp nº 157.527/RJ, assentou que o Código de Ética Médica tem o status de lei federal, porque decorrente da Lei nº 3.268/57, e se pode ser invocado como norma violada é porque assim o é, já que só podem ser invocadas perante aquela Corte tratados ou leis federais (art. 105, III, alínea a, Constituição Federal/88).
Conforme já mencionado, a requisição judicial, ou mesmo policial não se constitui por si só em “justa causa”, conforme estabeleceu o Egrégio Supremo Tribunal Federal no habeas corpus retromencionado, cuja ementa se transcreve: “Segredo profissional. Constitui constrangimento ilegal a exigência de revelação de sigilo e participação de anotação constante das clínicas e hospitais. Habeas corpus concedido”.
A mesma excelsa Corte, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 91.218-SP, estabeleceu que a apresentação do prontuário e anotações só tem cabimento quando consentida pelo paciente, ou quando não for em detrimento deste, e ainda com a ressalva de que tais documentos devem ser apenas postos à disposição para perícia médica, sob sigilo pericial.
Também é do Supremo Tribunal Federal o seguinte aresto, assim ementado: “É constrangimento ilegal exigir-se de clínica ou hospital a revelação de suas anotações sigilosas” (RTJ 101/176) – “Apud Celso Delmanto – Código Penal Comentado” (5).
Atento a essas situações, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução nº 1.605/2000, determinando qual deve ser o comportamento ético do médico frente a tais tipos de requisição.
A resolução repete a determinação do Código de Ética Médica, que veda ao médico revelar o conteúdo do prontuário ou ficha médica sem o consentimento do paciente.
Denota-se, ante o exposto, ser pacífico o entendimento de que as informações requisitadas pelo magistrado ou autoridade policial somente deverão ser atendidas quando não violarem o segredo médico. Caso contrário, o médico, o funcionário ou o dirigente hospitalar acusará o recebimento, mas declinará de fornecer, alegando impedimento legal e ético.
A jurisprudência por seu turno também corrobora com tal entendimento: “AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS – PRONTUÁRIOS – SIGILO MÉDICO – ÉTICA MÉDICA – CASO ESPECÍFICO – REQUISIÇÃO JUDICIAL – IMPOSSIBILIDADE.
De acordo com o Código de Ética Médica (Lei n. 3.268/57) e a Instrução n. 153/85, da Corregedoria de Justiça do Estado de Minas Gerais, a entrega de documentos contendo dados de interesse médico às instituições públicas ou privadas, sem a devida e expressa autorização do paciente, de seu responsável legal ou sucessor, viola a ética médica.
“A sua requisição judicial deverá ser determinada apenas quando houver interesse público que recomende sua requisição para instrução de processos judiciais, entretanto, deverão ser adotadas providências no sentido de se resguardar o sigilo profissional da classe médica.” (TJMG, Agravo de Instrumento nº 2.0000.00.511572-8/000, 16ª. C.Cív., rel. Domingos Coelho, j. 14.9.2005)
Do voto condutor, destaca-se: ““SIGILO MÉDICO. ÉTICA MÉDICA. PRONTUÁRIO. CLÍNICA. SEGURADORA. Viola a ética médica a entrega de prontuário de paciente internado à companhia seguradora responsável pelo reembolso das despesas. Recurso conhecido e provido.” (Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, dec. unân., julg. em 14/4/1998, pub. no DJU de 29/6/1998 e na RSTJ, v. 112, p. 224).
Por ser relevante à questão examinada, vale transcrever partes do voto do eminente Ministro Relator, na parte em que tratou da questão relativa ao sigilo do profissional médico:
“Consta do voto do Min. Décio Miranda:
‘Os preceitos contidos no aludido Código são normas jurídicas especiais, porquanto submetem determinada classe profissional e conferem aos Conselhos atribuições voltadas ao asseguramento da eficácia das normas deontológicas. Portanto, os médicos registrados nos Conselhos Regionais são obrigados à observância e cumprimento das normas contidas no Código de Ética Médica, sob pena de sanção.
Esta conduta, conforme os padrões do Código de Ética Médica, é devida, também, por aqueles médicos que estão submetidos às relações de trabalho, fundadas, inclusive, na Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT. Este entendimento deflui, naturalmente, da exegese e aplicação da lex specialis.
Constam desse Código as seguintes disposições:
‘Art. 102 – Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente.
Parágrafo único – Permanece essa proibição:
a) Mesmo que o fato seja de conhecimento público ou que o paciente tenha falecido.
b) Quando do depoimento como testemunha. Nesta hipótese o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento.’
[…]
‘Art. 108 – Facilitar o manuseio e conhecimento de prontuários, papeletas e demais folhas de observações médicas sujeitas ao segredo profissional, por pessoas não-obrigadas ao mesmo compromisso.’
Para a proteção do sigilo profissional, o ordenamento jurídico brasileiro ainda contempla normas esparsas, como a do art. 144, do Código Civil: ‘Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fatos, a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo’, e a do art. 154 do Código Penal: ‘Revelar alguém, sem justa causa, segredo de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem.’
O Conselho Federal de Medicina, inúmeras vezes chamado a se pronunciar sobre o tema, consignou:
‘Resta-nos reafirmar que o prontuário do paciente, contendo dados de interesse médico, não é instrumento de cobrança de serviços e sim repositório de sua vida médica, pertencendo a ele, paciente, e à instituição que tem a sua posse no sentido físico e é responsável pela sua guarda’… ‘Outra coisa, porém, é a instituição prestadora de serviços médicos ser obrigada a enviar os prontuários aos seus contratantes públicos ou privados. As razões elencadas pelo consulente são mais do que suficientes para julgarmos impróprio tal procedimento’ (Processo 4.842-93, f. 88).
E concluiu:
‘Conclusão. Os princípios e fundamentos doutrinários do segredo médico, capitulados na legislação vigente e consagrados em farta jurisprudência permite-nos concluir: 1.º o segredo médico é espécie de segredo profissional, indispensável à vida em sociedade – e por isso protegido por lei – e cuja revelação, seja pelas informações orais ou através de papeletas, boletins, folhas de observação, fichas relatórios e demais anotações clínicas está vedada não somente aos médicos como também a todos os funcionários e dirigentes institucionais.’ (Proc. 429/93).
A doutrina referenda e se ampara nesses precedentes:
‘Por fim, entende-se também que a instituição prestadora de serviços não está obrigada a enviar, mesmo por empréstimo, os prontuários aos seus contratantes públicos ou privados (Parecer-Consulta CFM n. 02/94). Mais recentemente, através do Parecer-Consulta n. 05/96 ficou patente, mais uma vez, que ‘o diretor clínico não pode liberar cópia de prontuários de paciente para Conselhos de Saúde, porém tem o dever de apurar quaisquer fatos comunicados, dando-lhes conhecimento de suas providências, sob pena de responsabilidade ética ou mesmo criminal’. Nem mesmo à Justiça, conforme definiu o Supremo Tribunal Federal em acórdão do Recurso Extraordinário Criminal n. 91.218-5-SP, 2.ª Turma, negando direito de requisição da ficha clínica e admitindo apenas ao perito o direito de consultá-la, mesmo assim, obrigando-o ao sigilo pericial, como forma de manter o segredo profissional)’ (Genival Veloso de França, Comentários ao Código de Ética Médica, 1997, p. 93).”(Revista citada, p. 228/231).”
CONCLUSÃO
Diante do exposto, conclui-se que o fornecimento de prontuário médico sem o consentimento do paciente só poderá ocorrer nas hipóteses de “justa causa” (circunstâncias que afastam a ilicitude do ato) e “dever legal”.
Regra geral não há dever legal de apresentar qualquer documento do paciente, principalmente, o prontuário médico. Pelo contrário, há a obrigatoriedade do hospital guardar o prontuário inclusive sob o máximo sigilo.
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